Imagem: Christian Lue
O mês de junho já espreita e, com ele, chega aquela época do ano destinada a promover e a discutir em sociedade as causas da comunidade LGBTQIA+. O #pridemonth, que nasceu da revolta de Stonewall como um símbolo político de luta por direitos, possibilita a abertura de diversos espaços de aprendizagem, acolhimento e estímulo à criação de políticas públicas feitas para proteger e fortalecer as pessoas.
Esta ideia, que ganha capacidades revolucionárias quando moldada pelas mãos de pessoas e instituições comprometidas, pode também tornar-se um atalho tempestuoso para empresas que querem apenas os seus nomes presentes na conversa sobre este tema (que, hoje em dia, é global), mas sem, efetivamente, se movimentarem para beneficiar a comunidade e as suas causas.
Como não deixamos de lado um bom tema controverso, esta edição da Independence Insights é um manifesto contra a corrida coletiva feita por marcas, instituições, órgãos públicos e qualquer empresa do setor privado quando o assunto é atingir o público queer. Afinal, há coisas que precisam de ser faladas a sério e, seja dentro ou fora da comunidade LGBTQIA+, não há mais espaço para mergulhos rasos e passageiros sobre o tema.
Conexões que geram ações
Há quem diga que hoje construímos uma sociedade cada vez mais transparente - menos tabus, menos estereótipos, menos restrições e opressão. Este movimento coletivo em direção a uma comunidade cujas engrenagens são mais receptivas à diferença, naturalmente, anda lado a lado com um maior bem estar social (tanto no aspecto grupal, quanto no individual). Afinal, quem diria que criar espaços para que as pessoas manifestem quem realmente são, falem sobre as suas experiências e façam o que as deixam felizes seria uma política pública em prol do coletivo, não é? (risos)
Mas sejamos francos aqui: não queremos ser românticos e criar uma percepção distópica sobre a nossa sociedade atual. Sabemos que ainda há muito para caminhar e alcançarmos a inclusão num coletivo que, em diversas camadas, ainda atravessa muita violência e repressão. Se não se lembra, vamos refrescar a sua memória:
Jovens LGBTQIA+ são vítimas preferenciais de bullying em Portugal;
Recentemente, um jogador do PSG recusou-se a jogar com as cores de apoio à causa LGBTQIA+;
Estudo mostra que a pandemia agravou a discriminação da comunidade LGBTQIA+ em Portugal;
Presidente da Sociedade Portuguesa de Virologia recebe acusações de homofobia após declaração pública sobre varíola dos macacos, e por aí vai.
Infelizmente, notícias como estas não faltam. E, se compararmos com um passado nem tão distante assim, este já é um sinal de avanço pelo simples facto de que hoje ouvimos falar sobre este tipo de violência. E, como dizem por aí, conhecimento é poder: para aqueles que não vivem tais experiências de desumanidade, surgem cada vez mais apelos públicos para que exista uma movimentação social em prol das vítimas e de uma melhor coletividade. E, para quem está imerso em realidades ferozes como estas, o simples ato de dar visibilidade às suas mazelas já é capaz de criar oportunidades de identificação e força para denunciar as suas experiências e mudar a sua realidade (e a de muitos outros). A procura por transparência, aliada com a hiperconectiviade proporcionada pela internet e redes sociais, colocou-nos dentro da era do ativismo digital - como aborda esta reportagem feita pelo TAB Uol. Esta lógica serve tanto para pequenas coisas do quotidiano, quanto para questões que são cruciais para a garantia da vida de alguns grupos sociais.
Enquanto para alguns uma simples petição online para abrir casas de banho sem género dentro das escolas, por exemplo, não representa nenhuma mudança efetiva, para outros é a abertura de um portal que trará frutos num futuro próximo. Para Rosemary Segurado, cientista política e professora da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), o indicador de sucesso do ativismo não se resume a atingir o objetivo final - afinal, na maioria dos casos, o ativismo é a chama necessária para ascender um caminho de pólvora. E, sem esse fire catcher, não existiria uma explosão ao final.
A lição deixada pela professora é de que tem de se começar por algum lugar - e essa é uma ótima notícia nos dias de hoje porque, ao que tudo indica, a Geração Z já nasceu ciente desse facto. Para alguns estudiosos do assunto, os jovens fazem parte da chamada geração consciente, onde o ativismo não é mais do que um gesto individual, mas sim uma característica grupal. Este artigo do The Atlantic fala exatamente sobre isso:
“Embora a GenZ esteja assustada com problemas tão complicados quanto as mudanças climáticas, o terrorismo e a desigualdade de rendimento ao redor do mundo, pesquisas, estatísticas e dados sugerem que os jovens desta geração estão tão envolvidos com os problemas sociais quanto qualquer geração anterior - e podem ser ainda melhores a fazer mudanças positivas no mundo”.
E este artigo do YPulse também é muito bom para perceber como os Millenials e a Geração Z mudaram o ativismo.
O facto é: a sociedade atual observa, fala, organiza-se e toma cada vez mais ações em prol de causas coletivas. E, inegavelmente, esse já é um traço das novas personalidades do futuro. Agora vamos um pouco além: sendo este um comportamento já esperado socialmente, deixamos aqui uma questão pertinente (e perturbadora) ao nosso universo da comunicação digital: já seria tarde (ou cedo demais?) para a publicidade fazer uso desta nova skill dos seus públicos?
Um (questionável) turnover
Um dos conceitos que andaram desde sempre agarrados ao meio publicitário e ao seu propósito principal (que pode ser descrito, em poucas palavras, como vender produtos e serviços) é a sazonalidade. A estratégia de incentivar picos de vendas em determinadas épocas do ano a partir de conceitos comemorativos é utilizada como tática há anos - e, para alguns setores do mercado, esta venda periódica é o que, a longo prazo, garante a saúde financeira dos seus negócios. A mesma coisa acontece com as estações do ano: há empresas localizadas em destinos turísticos tropicais que se preparam para conquistar a receita do ano inteiro apenas nos quatro meses do verão. E isso é absolutamente normal no mundo dos negócios - afinal, este comportamento de consumo periódico já deixou de ser uma tendência há muito tempo. Hoje em dia já é um traço da nossa cultura.
Não acredita? Experimente dizer à sua mãe que não lhe comprará nenhuma prenda no próximo Dia da Mãe. Ou diga ao seu/sua namorado/namorada que o Valentines Day é apenas uma data comercial. Ou aproveite e conte já ao seu filho que o Pai Natal não existe e que não haverá presentes na árvore no próximo 25/12. Ao fazer isso, não vai apenas contra a lógica do mercado, mas também renega a eventos sociais que são responsáveis por reger o bem estar da nossa coletividade capitalista. A coisa é séria - e comprar/ganhar presentes já é uma função socialmente esperada.
Para o setor dos negócios, bolsos cheios. E foi a partir desse sucesso conquistado de forma gradual com o passar dos anos que marcas e empresas passaram a ambicionar outras épocas do ano para alavancar ainda mais as vendas - afinal, uma quantidade limitada de datas disponíveis para picos de vendas já não era suficiente. O mercado publicitário precisava de olhar mais de perto para os seus públicos e entender o que era importante o suficiente para que estes ficassem dispostos a comprar também noutras épocas.
Bem, se não previu isso sentimos informar: eis aqui o momento de unir os dois assuntos que estávamos a discutir no início desta newsletter. Afinal, uma das coisas que mais nos movimenta socialmente hoje em dia é a luta pelo direito de sermos nós mesmos, sem opressões - e é dentro deste espectro tão íntimo e pessoal que as marcas tem recolhido a nossa atenção e, consequentemente, o nosso dinheiro. Nada de Dia do Pai ou coleções de inverno, o novo alvo da publicidade agora é o #pridemonth, o Mês da Mulher e por aí vai. O que pode ser bom e ruim ao mesmo tempo.
“Hi, gay!”
A linha ténue entre amplificar vozes e se apropriar de espaços de resistência é o que, hoje, costura a relação entre a publicidade e o ativismo social. Em épocas como a que estamos prestes a viver com o Pride Month, a discussão sobre qual é o papel das marcas na militância pelas causas queer fica mais viva do que nunca. Para brand managers, ali vive uma oportunidade de conversa com o seu público. Para a comunidade LGBTQIA+, ali vive o destino da sua vida. A importância dada às discussões e manifestações sociopolíticas é, sumariamente, diferente para cada uma das partes e, na maioria das vezes, esse descompasso entre elas é o que leva a desastres como esse:
Na nossa cabeça (e para grande parte da comunidade queer), é exatamente assim que algumas marcas usam os seus espaços mediáticos para se posicionarem sobre a causa LGBTQIA+. E, apesar do vídeo acima ser uma sátira, exemplos reais não faltam, como:
Em campanha do mês do Orgulho, Magnum compara o gesto de um homem abraçar o seu namorado em público com “guilty pleasure” e gera polémica negativa;
Havaianas erra cor da bandeira LGBTQIA+ em campanha do Pride Month;
Coca-Cola recebe duras críticas nas redes sociais após divulgar foto de seu comité de Diversidade (que, na verdade, não era nem um pouco diverso).
A questão é que falar sobre pride hoje é entrar numa espiral de dinheiro. A reportagem da CNBC logo abaixo estima que, só nos EUA, o #pridemonth de 2019 movimentou, aproximadamente, 50 milhões de dólares em Washington, 74 milhões em Los Angeles e 25 milhões em Denver (entre eventos, passeatas, merchandising e campanhas) - e a tendência é de continuar a crescer mais ano após ano.
Porém, também hoje, a ideia de ganhar dinheiro fácil com a comunidade LGBTQIA+ tem caído em desuso - afinal, a maior parte dos consumidores compreendem que de nada valem campanhas megalomaníacas em Junho se, no resto do ano, todo o apoio necessário para movimentar e melhorar as condições sociopolíticas da comunidade queer simplesmente desaparecem. Nos nossos tempos é requisito que as marcas saiam de suas zonas de conforto e se comprometam de verdade com aquilo que falam. E, não. Trocar o avatar da empresa nas redes sociais por uma versão com arco-íris não é um bom exemplo de como ser útil para a comunidade - e, cada vez mais, atitudes superficiais como essas só geram esse tipo de acontecimento: “Conheça nove corporações que usaram a bandeira LGBTQIA+ em Junho, mas também doaram milhões de dólares para políticos anti-queer”. Se a empresa se quer manifestar a favor das causas, fique à vontade para trocar o avatar - mas certifique-se também de que, para além disso, utilizará os seus espaços para promover discussões importantes sobre o assunto e investir em organizações que levam a temática a sério.
Take my pink money!
“Ok, então o que é que a minha empresa pode fazer?”. Neste artigo, a agência de pesquisa de tendências Reboot fez um apanhado de organizações globais que estão (ou não) a apoiar ativamente a comunidade LGBTQIA+ e como o público queer se sente em relação ao “corporate pride” em geral. Eis alguns ensinamentos valiosos:
Vendas vazias são flop: utilizar a bandeira LGBTQIA+ como roupagem de produtos não é, necessariamente, uma atitude vista com bons olhos. Se for vender algum produto com esta estampa, tenha uma estratégia mais profunda por trás (como, por exemplo, doar o lucro das vendas para instituições de acolhimento para pessoas trans). Não erre como a Kim Kardashian errou com o seu joguinho de telemóvel.
Chover no molhado não resolve nada: ou, noutras palavras, fazer campanhas apenas em espaços onde a visibilidade queer já é uma temática amplamente aceite não resulta em passos para a frente - e pode ser visto como uma jogada para conquistar dinheiro fácil. Falar sobre diversidade também é falar com todos os públicos, em todos os lugares e sem receios. O Facebook, por exemplo, foi acusado recentemente de ocultar a sua campanha global de pride em países onde o sentimento predominante é anti-gay, não ajudando a discussão a chegar onde ela realmente importa.
Rainbow avatar, but also more queer employee: para além de manifestar apoio público à comunidade LGBTQIA+, outro ponto importante e bem visto (e, muitas vezes, fiscalizado) pelo público é a promoção de políticas internas de igualdade de direitos, incentivo à contratação, proteção e acolhimento de funcionários queer.
Em junho, mas também durante todo o ano: outro ponto importante é a consistência das ações. Como falámos, os esforços das empresas com os temas da comunidade LGBTQIA+ tendem a estar restritos ao mês de junho por ser um mês simbólico para a luta por direitos queer. Mas, não é apenas nestes trinta dias que procuram por espaços de fala, políticas afirmativas e apoio institucional. Campanhas sazonais que aparecem nas nossas timelines apenas em junho, geralmente, não geram efeitos contínuos para a comunidade. Ser uma empresa assumidamente pro LGBTQIA+ requer mais do que um belo video-manifesto. Requer mãos estendidas e ações efetivas nos 365 dias do ano.
Como é claro, o universo do ativismo digital não é uma tarefa superficial - afinal, falamos sobre a vida e o destino de milhares de pessoas. No mundo da transparência, não existe espaço para a superficialidade. É cada vez mais necessário um tempo de preparação para mergulhos mais fundos - estes que a sociedade do futuro cobrará ainda mais.
Antes de irmos embora por hoje, deixamos aqui um último link para atualizar as temáticas do seu feed e inspirar o seu olhar para este próximo mês que será recheado de campanhas e ativações sobre o tema: dez pessoas que usam as suas vozes no TikTok para fazer alguma mudança no mundo.
Esperamos que seja enriquecedor e também desconcertante. Afinal, ser queer é ser resistência e aprender a hackear o sistema por dentro (sempre para o melhor).