Acreditamos que, pelo menos uma vez na vida, já esteve envolvido num processo de criação de um avatar. Seja a escolher fotos para o Facebook ou até mesmo a pensar em frases criativas para a bio de qualquer outra rede social. Desde a ascensão das redes e dos serviços digitais, conseguíamos sentir alguma sedução na ideia de que, atrás de uma tela, podemos construir versões de nós mesmos, mas será que já pressentíamos que estávamos cara a cara com a pontinha de um iceberg chamado metaverso? Talvez não.
Afinal, foi a partir de 2020 que as procuras pelo termo no Google Search começaram a crescer. Só no último ano, o número subiu dez vezes comparado com 2019. Não é para menos, os estudos já mostram que este novo conceito de interação digital tem o poder de transformar a maneira como socializamos, fazemos compras, consumimos entretenimento e planeamos a nossa vida a longo prazo - e é justamente por isso que há tantas grandes empresas a investir fundos em pesquisa sobre isto. Se está a pensar “ok, mas wtf is metaverso?”, leia a Independence Insights desta semana para ficar a saber.
Spoiler: ainda não existe um consenso sobre o que é o metaverso e há muitas ideias sobre a sua definição, como podemos ver neste artigo.
Há um ponto de partida que é considerado razoável por aqueles que estudam o tema. O metaverso significa uma transição fluída entre o espaço físico e digital, onde representações de nós mesmos coexistem em ambos os universos.
À medida que vivemos as nossas vidas atreladas à tecnologia e à internet, fica cada vez mais difícil identificar alguma tarefa que fazemos apenas num dos espaços - seja no campo laboral, social, burocrático ou educativo.
Hoje, as nossas vidas já interligam a rotina física com as funcionalidades digitais e a tendência é que esse processo se torne cada vez mais natural, eficiente e impercetível.
O metaverso é, então, um organismo ainda em construção (assim como o seu conceito). Num estudo, o investigador Matthew Ball indica que “vai emergir lentamente com o tempo, à medida que diferentes produtos, serviços e capacidades se integram e se fundem” e, indo na mesma direção de pensamento, o CEO da Verizon referiu recentemente que, pela crise global da COVID-19, a sociedade saltou de cinco a sete anos no processo de revolução digital, indicando que, conforme a diminuição das restrições, o desenvolvimento tecnológico estará cada vez mais proeminente e aliado às nossas rotinas. Ou seja, o metaverso está longe de ser uma ideia distante. E disso os amantes do gamming sabem bem. Afinal, para além da discussão sobre definições técnicas e teóricas, existe a prática - e o metaverso nada mais é do que a extensão daquilo que eles já conhecem há anos (agora com mais investimento, é claro). Por exemplo, o que é que os jogos como Animal Crossing, Sea of Thieves e Fortnite têm em comum com um bar ou um restaurante? São todos lugares de encontro, socialização e experiências. Fortnite e Roblox estão a juntar social media, gamificação e entretenimento, oferecendo um primeiro vislumbre do que o metaverso pode ser: um lugar verdadeiramente social. É uma mina de oportunidades e, claro, o que não falta são experiências. Há pouco tempo atrás, o Fortnite promoveu um festival de música internacional independente para os seus jogadores (e foi um sucesso). A BMW comprou a ideia e chamou os Coldplay para tocar no JOYTOPIA, o seu próprio universo digital. O GTA também desenvolveu uma iniciativa onde os jogadores podem fazer entregas de comida via app no universo do jogo e, ao mesmo tempo, ganhar cupões para entrega de refeições em casa (física).
Entre tantos exemplos, projetos e investigações, é natural que a discussão sobre as infinitas possibilidades oferecidas pelo metaverso nos faça refletir sobre sua aplicação em tópicos socialmente urgentes, como saúde, segurança, diminuição da pobreza, ente outros. E foi a pensar nesta potência humanizadora que surgiu o projeto RAW, desenvolvido pelo Comité Paralímpico Internacional em parceria com o Facebook e a empresa PHORIA. Com o recurso a VR, a iniciativa proporciona uma viagem audiovisual imersiva que coloca o espectador lado a lado a um atleta paralímpico durante uma competição, explorando todos os sentidos e trazendo uma perspetiva real sobre o que é ser um atleta de alta performance com deficiência. O objetivo da experiência, ao criar esse contacto sensorial, é impactar positivamente as perceções do público sobre a deficiência, trazendo histórias inspiradoras e normalizando as suas condições. O projeto foi amplamente elogiado e bem visto pelo público que acompanha o universo do desporto, chamando a atenção precisamente pela sua capacidade de aproximar as pessoas de uma experiência ainda pouco valorizada pelos média, pelos patrocinadores e pela sociedade em geral.
Porém, esta habilidade de extensão prometida pelo metaverso e as suas tecnologias, dependendo de como forem usadas, nem sempre geram uma afinidade positiva - como é o caso do projeto desenvolvido pela ONG HOPE International, que utiliza VR para ligar comunidades africanas que passam fome com possíveis doadores em países ricos. Em vez de pedirem donativos de forma tradicional, como pelo correio, TV ou e-mail, esta instituição desenvolveu uma experiência imersiva para que os possíveis contribuidores possam ver com os seus próprios olhos a realidade em que tais comunidades vivem atualmente. A ideia dos criadores da iniciativa é usar VR para substituir a viagem a esses destinos, que costumam ser muito importantes na hora de cativar um doador.
Há uma discussão que paira sobre este tipo de abordagem e o uso da tecnologia - que, além da Hope Internacional, já foi utilizada por outras instituições de renome como a UNICEF. Embora os projetos imersivos sejam eficazes financeiramente, o Dr. Ciaran Gillespie, da Universidade de Surrey, alerta que esta tendência está a reforçar a separação entre países ricos e regiões em desenvolvimento. Para ele, os “safáris da pobreza” com objetivos filantrópicos correm o risco de normalizar e reforçar hierarquias que posicionam o mundo ocidental como mais poderoso do que as regiões menos desenvolvidas. Em suma, a preocupação dele e do seu grupo de estudo é que filmes como “Nuvens sobre Sidra”, da UNICEF, retratem a resistência a fim de estimular a simpatia pelo sofrimento, ao invés de desafiar as estruturas que, na verdade, criam o sofrimento. E tudo o que não queremos é criar um género de Westworld da vida real, não é? Para se aprofundar mais nesta discussão, recomendamos este artigo.