Uma das nossas primeiras grandes conquistas em bebés é pronunciarmos a nossa primeira palavra. Basta ouvirem “mamã” ou “papá” para a família inteira entrar em êxtase. Se repararmos atentamente, a expectativa por esse momento reflete como a comunicação é essencial para o nosso desenvolvimento (e, quiçá, sobrevivência) enquanto seres sociais.
Afinal, em sociedade, uma das práticas que mais desenvolvemos em conjunto é a de experimentarmos novos e diferentes métodos de troca de informações – seja por palavras, gestos, imagens ou conceitos. O nosso comprometimento em interagir foi tanto que, com o passar do tempo, a comunicação foi institucionalizada como ferramenta que gere todas as questões da nossa sociedade, das mais simples às mais complexas, como a educação, o lazer, a justiça, etc.
Mas, dentro desta reflexão, a questão que fica é: a comunicação, que em teoria deveria ser esse conjunto de sistemas de troca homogéneos que regem a sociedade, é algo verdadeiramente acessível e abrangente a todos?
Para esta questão, a Independence Insights desta semana demonstra que, apesar da troca social ser algo que une toda a nossa existência, ainda há muito a percorrer até alcançarmos uma comunicação que seja verdadeiramente inclusiva.
Eu sei o que fizeste no século passado
Somos seres comunicativos por nascença e, para prevalecermos, agrupamo-nos com pessoas com características semelhantes às nossas, criando comunidades. Esta lógica prevaleceu por muito tempo entre nós e foi, de facto, um fator determinante para a nossa sobrevivência enquanto espécie num mundo ainda pouco explorado. Porém, podemos fazer o exercício de refletir também sobre os impactos que o agrupamento seletivo causou (e ainda causa) no nosso formato de socialização e em todas as dinâmicas presentes na vida em sociedade.
O primeiro deles, e talvez o que produz efeitos mais profundos na nossa forma de comunicar, é a nossa falta de abertura para com o outro. Quando, dentro dos nossos grupos, temos bem definido o que somos e o que nos une, a diferença relativamente ao que nos identificamos deixa de ser relevante para a manutenção da nossa própria comunidade - e é aí que está o perigo.
Ao nos isolarmos dentro da nossa zona de conforto, aprendemos a viver apenas com iguais e cultivamos um desinteresse quase crónico sobre a realidade alheia.
Quando precisamos de pensar sobre o outro costumamos fazer apenas o mínimo do que está ao nosso alcance: ficamos no campo das suposições. Não os vemos, mas acreditamos que gostem de usar chinelos e camisas xadrez. Não os ouvimos, mas acreditamos que critiquem o aquecimento global e gostem de ouvir Quim Barreiros. Não convivemos com eles, mas acreditamos que os seus costumes são retrógrados ou demasiado liberais. A nossa mente agarra-se a poucas ou quase inexistentes pistas sobre a forma como o diferente se comporta e, quase que instintivamente, criamos os estereótipos que nos acompanham em todas as formas de comunicação sobre o exterior: em conversas casuais, no cinema, em reportagens no telejornal, na publicidade, nos livros de história e por aí. A nossa lente para ler o mundo que vai além do nosso próprio umbigo torna-se, de facto, o próprio estereótipo.
Com o passar do tempo, a nossa forma de viver aprimorou-se com a tecnologia, o mundo globalizou-se e surgiram novas formas de exercitar aquilo que fazemos desde que nascemos: comunicar. A internet, quebrando tantas barreiras, tornou possível conectarmo-nos com mais facilidade a realidades completamente distintas entre si, dando espaço para coisas maravilhosas como o Studio Kawakeb, um projeto de design fundado em Beirute com foco em educar o resto do mundo a partir do seu portfólio politicamente relacionado com as questões do Líbano, promovendo um processo de criação colaborativo com base nas realidades sociais da região. Quando é que um cidadão português, dentro da sua própria casa, poderia mergulhar tão profundamente nas experiências do povo libanês sem a explosão da internet?
No entanto, essa repentina proximidade proporcionada pelo mundo digital também abre espaço para desastrosos choques de cultura - como o reboot da clássica série dos anos 90: Sex And The City, que na sua versão original perpetuou caracterizações ofensivas sobre a comunidade LGBTQIA+, que na época da gravação eram senso comum do grupo à qual a série era dirigida. Ainda assim, procurar corrigir os erros do passado e ao tentar assumir-se como uma produção que pode conviver de forma respeitosa às diferenças no nosso mundo globalizado, o reboot avança com a caracterização de pessoas não binárias. Mesmo assim, esta cartada ainda parte do degrau que divide o “eu” do “outro”, sem dar um passo à frente para conhecer o que há para além dos limites do castelo - e, infelizmente, acaba por esbarrar em mais uma representação cheia de estereótipos sobre género, sexualidade e identidade. E, com a internet, esse torna-se o problema em querer gerar diversidade sem pensar na inclusão.
Give them the mic, please!
Não adianta ceder ao movimento, por mais diversidade e representações que se encontrem, se a abertura à mudança não for genuína. Aliás, é exatamente dessas situações forçadas que o estereótipo se torna cada vez mais aceite e perpetuado. Afinal, é muito mais confortável ouvir o nosso igual a falar sobre o mundo lá fora do que realmente entender a realidade do outro para a conhecer, compreender, criar uma convivência e traçar as nossas próprias percepções, sem a necessidade de usar a obsoleta lente feita de estereótipos.
O mundo globalizado já não aceita que a comunicação seja feita apenas entre iguais e há, cada vez mais, uma procura por uma comunicação mais igualitária. Pelo que diz o projeto ForbesWoman, a conquista dessa grande utopia social é clara - e está bem próxima de nós, que trabalhamos com comunicação:
“Os média definem a cultura e a cultura define a mudança. A comunicação só será eficaz quando for relevante e refletir as pessoas que consomem os conteúdos”.
Noutras palavras: não adianta apresentar a diversidade sem pensar na verdadeira inclusão de tais grupo. Não adianta de nada construir uma personagem não-binária se, no enredo, ela não representa a real experiência de uma pessoa não-binária, com as suas necessidades, dores e alegrias.
Mais exemplos? Passando do mundo do entretenimento para a vida real: o que realmente querem os grupos que clamam por diversidade?
A Female Quotient, em parceria com a Google e a Ipsos, realizou uma pesquisa com os consumidores sobre as percepções sobre inclusão e diversidade na publicidade. Alguns resultados:
77% dos millennials e 76% dos adolescentes realizaram ações relacionadas a um produto ou serviço depois de ver uma campanha publicitária inclusiva ou diversa;
85% dos consumidores latinos realizaram ações relacionadas a um produto ou serviço depois de ver uma campanha publicitária que consideram inclusiva ou diversa;
69% dos consumidores negros indicaram que são mais propensos a comprar uma marca cuja publicidade relaciona positivamente raça/etnia;
71% dos consumidores LGBTQIA+ disseram ser mais propensos a procurar proativamente uma marca cuja publicidade representasse autenticamente variedade de orientações sexuais.
A diversidade, neste caso, vai além da premissa de que é simpático usar modelos com diferentes corpos, etnias e nacionalidades nas campanhas de publicidade. Ela é a porta de entrada para a inclusão e para o acolhimento de pessoas consideradas “diferentes”, cujas particularidades foram segregadas por tanto tempo no nosso formato de comunicação.
Menos fala, mais ação!
O espaço dado para a conversa sobre diversidade e inclusão tem crescido cada vez mais nos debates sociais e em planos para o futuro da nossa sociedade, mostrando que, de facto, há um caminho sólido para a implementação de um mundo que respeita o diferente, sem segregá-lo.
Um dos caminhos possíveis para criar um mundo, de facto, inclusivo, tem três camadas básicas: alargar as estruturas sociais, para derrubar de vez o muro criado entre o “eu” e o “outro”, equilibrar a fala, para que todos partam do mesmo nível de conhecimento comunicacional, e entregar a chave, para que se acabe de vez com a cultura do interlocutor e as suposições sobre o outro. Esta rota, apesar de muitas vezes parecer distante da realidade, já está em curso – e é também um dever nosso olhar para os bons exemplos, promovê-los e usá-los como inspiração.
Zoom in: um grande e belo exemplo de debates e projetos que são realmente eficientes em alargar as estruturas sociais e que ligam a comunicação inclusiva com uma linguagem neutra.
Como para muitos, a primeira questão que surge é: ‘qual é a diferença entre as duas?’. Este artigo explica muito bem a questão, mas vamos a um breve resumo:
Comunicação inclusiva:
De acordo com o portal Safe Space,
“inicialmente, a comunicação inclusiva era pensada para suprir a necessidade de uma comunicação não-verbal, ou seja, incluir pessoas surdas, mudas ou com outras deficiências. Hoje, o propósito continua a ser o mesmo: a inclusão. Mas a ideia expandiu-se e, hoje, assume o papel revolucionário de garantir e promover acessibilidade por meio de diferentes recursos da linguagem”.
É o que vemos neste projeto do The New York Times, que reuniu os seus colaboradores para explorarem a fundo os significados visíveis e invisíveis da linguagem de sinais, trazendo uma compreensão mais ampla da cultura surda. Este projeto mostra-nos a importância de um gesto que tem a possibilidade de mudar o dia a dia de muitas pessoas que não podem ouvir, criando inclusão e representatividade em projetos audiovisuais.
Linguagem neutra:
Ao falar de comunicação inclusiva, a linguagem neutra aparece como alternativa para a não designação de género. Dessa forma, avançamos alguns passos para a inclusão de todas as pessoas da nossa sociedade, contemplando as múltiplas identidades que existem. Como tudo o que mexe com as estruturas da sociedade, o assunto é polémico e ainda não há um consenso sobre qual é a forma mais neutra (e, consequentemente, respeitosa) a adotar. Ainda assim, não é preciso ir longe para ter atitudes mais inclusivas no uso da nossa linguagem, como:
Numa vaga de emprego trocar coordenador por a coordenação;
Trocar político por a classe política;
Trocar professores por o corpo docente;
Trocar os colaboradores por a equipa;
Outro ponto indicado pela Safe Space é a neutralidade referente ao género. Segue o fio:
“Seguindo essa ótica de neutralidade, foram criados sistemas que abarcam a comunicação de forma completa. Um deles, que está entre os mais utilizados, é o ELU.
Neste caso, o U é usado para substituir a terminação de pronomes que indicam género. Já para palavras terminadas em A ou O, utiliza-se E.
Ele —- Elu
Dela —- Delu
Bonita —- Bonite
Coordenadores —- Coordenadories (caso específico: palavras terminadas em “e” e indicam género masculino, usamos IE)Outro sistema bastante adotado para adaptar pronomes é ILE/DILE. Pode-se traçar uma comparação aos termos they/them, do inglês”.
O assunto é complexo e ainda cria muita discussão – mas devemos sempre estar atentos enquanto não existe um consenso. Para quem se quer aprofundar no assunto, recomendamos:
- Um aprofundamento sobre linguagem neutra feita pela Dezanove;
- O Guia de Comunicação Inclusiva, desenvolvido pela Safe Space;
É importante extinguir as lacunas de conhecimento dentro da grande comunidade em que estamos inseridos. Um exemplo disso é a Pluriversidade Comunitária, um projeto que visa tornar a academia um espaço para todos – principalmente para os moradores dos bairros mais desfavorecidos de Lisboa.
“No fundo, o objetivo (do projeto) é a transmissão e o circular do saber, descentralizando o que normalmente fica apenas na academia, para o trazer até quem nunca teve acesso ao ensino superior”.
Aqui, vemos o saber enquanto área democrática. A meta da Pluriversidade é simples, embora trabalhosa: criar um mundo onde o conhecimento seja partilhado entre todos, descentralizando-o.
E quando falamos a mesma língua, mas ainda assim temos dificuldade em compreender o outro? É aqui que entra a terceira, e última, camada de mudança por uma comunicação mais inclusiva: entregar a chave. Afinal, não há ninguém melhor para falar sobre nós do que nós mesmos – assim como o outro para falar de si próprio.
Para além de expandir e equivaler, é preciso exercitar a escuta.
E é exatamente nesse conceito que trabalha o projeto Zona Dois, um programa de diversidade para a Industria Criativa. O foco é aproximar o mercado de jovens da periferia, trazendo para dentro do sistema diferentes visões, referências e insights. Aqui, ser “outro” é ser ouro – é o espaço onde as nossas diferenças são exatamente o que nos destacam positivamente.
A essência do Zona Dois é, de facto, a entrega das chaves, ao incentivar que as pessoas se apresentem e mostrem o que melhor fazem. Afinal, se há falta de diversidade na indústria criativa de Portugal, é preciso abrir vagas e ocupá-las com pessoas que possam somar de forma diferente.
As ferramentas já nos foram dadas, agora, é connosco repensar a comunicação que usamos no dia a dia.
E o nosso conselho é: fala quem quer, ouve quem tem juízo.