© Sebastiano Piazzi
Não, não leu errado. É isso mesmo. Graças ao avanço das tecnologias de inteligência artificial, um sistema operacional já é capaz de construir sozinho uma obra de arte a partir de referências artísticas previamente criadas.
Se por um lado esta notícia pode parecer uma “maravilha de avanço!”, pode também parecer uma cena de filme distópico, onde as máquinas ficam contra os trabalhadores de uma empresa e assumem à força os seus postos de trabalho em nome de um plano maligno de dizimar a espécie humana.
Para tranquilizar esse cenário catastrófico (ou apenas para pôr mais gasolina na fogueira dos pensamentos), temos uma Independence Insights completamente devota ao assunto - até porque não resistimos a uma boa polémica digital.
O conceito de inteligência artificial é algo que já está bem enraizado na nossa sociedade atual. Isto porque se tem trabalhado ativamente para que a A.I. se torne, de facto, a próxima grande disrupção tecnológica relevante ao processo de evolução da sociedade. Um exemplo prático é o crescimento do setor das tecnologias autónomas que, de forma muito subtil, se tornaram grandes aliadas à nossa rotina nos últimos anos (Olá, Alexa! Olá, Bimbi! Olá, robot que aspira a casa sozinho). Se pensarmos desta forma, essa possibilidade futurista e “remota” até se tornou uma realidade bastante útil, não é?
Às vezes é difícil para quem não é da área compreender esses caminhos traçados pela ciência - afinal, estão sempre vários passos à nossa frente. Porém, a ideia das “máquinas pensantes” é mais próxima da nossa realidade do que o imaginário comum poderia conceber. Neste artigo do New York Times, a jornalista Shira Ovide entrevista a expert em inteligência artificial Cade Metz sobre as nuances do termo A.I - e sobre o quão promissora (ou não) a sua aplicação se pode tornar. Aos que querem perceber melhor este campo, aqui vão alguns conceitos interessantes para termos em conta:
Esqueça os estereótipos: a A.I não é uma poção mágica que nos vai colocar diretamente numa realidade como a dos Jetsons ou em filmes de ficção científica;
Como já vemos nas nossas rotinas, os sistemas que operam com inteligência artificial são muito promissores - mas nada substitui a boa e velha aptidão humana para fazer tarefas ou tomar decisões (um exemplo: os carros autónomos da Tesla são incríveis e, de facto, podem ser conduzidos sozinhos, mas não são capazes de agir de forma racional quando alguma coisa fora do comum acontecer na autoestrada);
Posto isto, vamos à definição oficial: a inteligência artificial é nada mais, nada menos do que um sistema digital que opera a partir de dados previamente fornecidos por nós, humanos. O grande truque é que, para lidar com esses dados, o sistema usa formatos de leitura, organização e seleção muito parecidos com a forma que o cérebro humano opera (Curioso? Pesquise por “redes neurais”).
É exatamente neste último ponto que as coisas ficam ainda mais interessantes. Afinal, se um sistema tecnológico é capaz de repetir padrões anteriormente criados por mentes, bocas e mãos humanas, quais são as novas descobertas que podemos fazer? Poderia uma máquina desenvolver criações nunca antes alcançadas pelas mentes humanas?
Outros curiosos como nós já fizeram essa pergunta e, acredite ou não, chegaram a descobertas muito interessantes. Aviso: estamos prestes a entrar num mundo de conceitos e ideias completamente desconcertantes. Aceita continuar?
Bem… nós avisamos (e o Elon Musk também)
Brincadeiras e magnatas à parte, um dos fragmentos do intelecto humano que causa um grande interesse da sociedade há séculos é a criatividade - e todas as áreas da vida em que a usamos para nos expressar. A arte é algo que nos acompanha desde muito cedo na história da humanidade e tem um papel muito importante no nosso desenvolvimento sociocultural - aprendemos a lidar com questões profundas, a posicionar-nos em prol do coletivo, a conectarmo-nos com o outro, a pedir ajuda, a presentear, a vislumbrar o futuro e a conceber novas direções à vida.
Mas e quando a arte, algo particularmente humano, passa a ser feita por computadores? Não por humanos EM computadores - mas, sim, PELOS computadores.
Take a look: no Brasil, um artista (que também é programador de softwares) chamado Sergio Venancio criou o Extentio, um programa de computador que captura imagens de rostos nas ruas para, a partir delas, produzir desenhos de observação. Se ficou intrigado, recomendamos que leia esta reportagem do UOL Tab sobre esse assunto (tem até um vídeo a evidenciar o programa em ação).
Para Venancio, “a questão-chave é a intenção”. E, assim como com a visão da expert Cade Metz que vimos no início desta publicação, temos que concordar - "A máquina não tem consciência, a não ser que programe formas de estar ciente sobre o que está a fazer. Mas ela ainda não consegue produzir arte como o ser humano faz”. O artista defende o uso do software com o argumento de que ele, assim como os humanos, faz uso da “criatividade combinatória”, que é quando temos o domínio de vários elementos e combinamo-los para criar coisas novas. Alguém já ouviu a velha expressão: “nada se cria, tudo se copia”? No fundo, isso acaba por servir tanto para os artistas que desenvolvem uma técnica e a replicam em diversas das suas obras, como para os colegas que querem surfar na sua ideia de sucesso.
Le Baron De Belamy © GANs Algorithm, Obvious Collective
Copia, mas não faz igual
Outro projeto interessantíssimo que partiu do mesmo pensamento é o The Next Rembrandt, desenvolvido pela empresa holandesa ING e a Microsoft. Em conjunto, as empresas criaram um software para analisar toda a coleção de obras do artista Rembrandt Harmenszoon van Rijn e, no fim, criar um “quadro novo” do pintor, que morreu em 1669. Essa homenagem póstuma traz padrões muito semelhantes às suas antigas obras e, sem contexto, diríamos certamente que a pintura foi feita pelas mãos do grande artista holandês. Para os fãs, é um verdadeiro deleite aos olhos - mas, para outras pessoas, são levantados pontos pouco ortodoxos e que fogem da essência do que é “fazer arte”.
Essa questão veio à tona principalmente com o lançamento de outro projeto, que acabou por ser mais polémico. E, aqui entre nós, não era para menos: The Lost Tapes of 27 Club, um álbum novinho em folha que conta com músicas que replicam o estilo de Kurt Cobain, Amy Winehouse, Jimi Hendrix e Jim Morrison. Como sabemos, todos faleceram quando tinham 27 anos - daí o nome do álbum. O projeto foi realizado por uma organização canadiana chamada Over The Bridge, que aborda o tema da saúde mental na indústria da música.
A mensagem por trás do projeto, que é dar foco à grandiosidade de artistas que perdemos muito cedo por questões relacionadas à saúde mental, é importante e muito potente.
Sejamos francos: não é muito difícil imaginar que esse uso artístico de softwares de inteligência artificial pode originar, quando mainstream, projetos como este aqui. Afinal, tudo é uma oportunidade para uma boa selfie. Até mesmo na arte erudita.
Tudo o que falar pode ser usado contra si (e talvez até o que não falou)
Não nos entendam mal, não temos nada contra selfies ou cultura mainstream (aliás, somos expert nisso). O que nos preocupa é o caminho que a popularização desse tipo de A.I pode levar - afinal, existem pessoas muito bem intencionadas por aí (como os organizadores da ONG Over The Bridge), mas também existem pessoas que se sentem confortáveis em explorar esse universo para propagar deep fakes controversas.
O que são deep fakes? De acordo com a revista Super Interessante, “deep fakes são vídeos criados a partir de inteligência artificial e que reproduzem a aparência, as expressões e até a voz de alguém do mundo real. O nome vem da junção de duas expressões em inglês: “deep learning” (“aprendizagem profunda”) e “fake” (“falso”)”. Se quiser, leia mais detalhadamente sobre o assunto aqui.
Deep fakes podem ter piada - como o rosto do ator Harrison Ford rejuvenescido em algumas cenas de Han Solo:
Mas também podem ser utilizados como uma ferramenta poderosa de desinformação em campanhas políticas, por exemplo. E é aí que mora o perigo:
De acordo com um estudo feito pela empresa holandesa Deeptrace, a esmagadora maioria de casos de deep fake estão relacionados com política e pornografia - e, muitas vezes, com os dois temas ao mesmo tempo. Exemplo disso foi o caso do ministro dos Assuntos Económicos da Malásia, que se viu no meio de um escândalo sexual com o aparecimento de um vídeo que o colocava tendo relações sexuais com o assessor de um partido opositor. Nesta matéria do Observador , deparamo-nos com um grande buraco deixado na sociedade pelo uso indevido da A.I: “O crescimento dos media sintéticos e de deepfakes está a empurrar-nos para uma importante e perturbadora conclusão: a nossa crença histórica de que o vídeo e o áudio são registos fiáveis da realidade já não é sustentável”, disse o presidente da Deeptrace.
As máquinas no seu pior (ou os seres humanos?)
Como se já não bastasse o histórico de polémicas, o uso de inteligência artificial dentro das forças policiais também é um assunto muito importante a estar atento. Afinal, quem é que não fica assustado depois de ler uma matéria como esta, que nos diz que o ator estadunidense Michael B Jordan foi apontado por um sistema de reconhecimento facial como suspeito de participar de uma chacina no Brasil?
Ainda bem que o nosso querido protagonista de Creed estava bem longe do Ceará nessa altura. Mas e se não estivesse? É provável que uma história como a de Francisco se repetisse:
“Em 2021, o motorista Francisco Wellington da Silva Freitas foi preso devido ao método de reconhecimento fotográfico, ao ser apontado como suspeito de um homicídio. Só depois de passarem 45 dias preso é que a defesa conseguiu que saísse”.
Tanto no Brasil como nos EUA, sistemas de A.I usados para reconhecimento facial estão sob forte ataque por terem viés racista e discriminatório. Uma investigação comandada pela campanha global Ban The Scan, por exemplo, comprovou que quanto maior for a proporção de residentes não brancos em bairros nova-iorquinos como Bronx, Brooklyn e Queens, maior será a concentração de câmaras compatíveis com o reconhecimento facial - e, consequentemente, maior a probabilidade de mulheres e homens racializados serem apontados (e até mesmo condenados) como criminosos. É claro que sistemas mal executados agem de forma injusta e arbitrária também com pessoas brancas, mas ao compararmos o número de casos que ocorreram com pessoas brancas versus o número de casos que ocorreram com pessoas não brancas, o problema exponencia-se. E é aí que vemos onde mora, realmente, o “defeito” das câmaras de reconhecimento facial (para mais detalhes sobre isso, recomendamos esta reportagem da Revista Piauí).
Ao analisar estes dados, é fácil culpabilizarmos as máquinas e a tecnologia de inteligência artificial, mas, se voltarmos à discussão inicial desta publicação, surge a confusão: se a A.I não é nada mais do que um sistema de replicação de referências previamente disponibilizadas por humanos, a culpa não seria nossa e das nossas estruturas sociais? Afinal, o racismo, o machismo, a homofobia, a xenofobia, e outros tipos de preconceitos foram criados e sustentados por nós durante séculos - e não pelas máquinas. Casos como os de Michael B. Jordan e Francisco não são erros tecnológicos, bugs do sistema ou falta de precisão. Eles nascem a partir do erro humano - que é dos grandes e vem de séculos atrás.
Parafraseando, novamente, o artista-programador Sergio Venancio: “a questão-chave é a intenção”. A tecnologia artificial é capaz, sim, de crescer a níveis catastróficos e dizimar a vida humana? Não agora, mas como vemos o futuro está sempre em mudança. No entanto, se for bem trabalhada e com responsabilidade social, é capaz de criar facilidades e, quem sabe, ajudar a chegar a partes do nosso intelecto que não conseguimos sozinhos. Se pensarmos numa ótica positiva, não seria incrível ver a A.I a ajudar investigadores contra o cancro, por exemplo?
É, realmente, uma questão de intenção. A nossa tarefa, agora, é cuidar para que o desenrolar desta história venha para o avanço e não para a destruição. Certamente, um tema que ainda vai ser muito discutido!