Há quem diga que Smooth Criminal, hit intemporal do Michael Jackson, é baseado num crime famoso. Já é mais do que confirmado que Era uma vez em… Hollywood, filme do Tarantino, faz referência à trágica morte da atriz Sharon Tate em 1969, assim como Mindhunter, uma das séries de maior sucesso na Netflix, conta a história da tentativa de dois agentes do FBI desvendarem vários casos de serial killers norte-americanos.
O true crime já é considerado um género audiovisual e exemplos como estes não faltam - e a verdade é que somos naturalmente atraídos pela violência que nos rodeia. Pode parecer bizarro, mas há toda uma ciência por trás do tema (e também um mercado que lucra cada vez mais com essa estranha curiosidade humana).
A Independence Insights desta semana pode ser acompanhada com pipocas e é para quem adora fazer maratonas de CSI e Law and Order, mas sempre no conforto da sua casa.
“O conteúdo que se segue contém cenas sensíveis e violentas”
Enquanto que para alguns esta frase é um sinal óbvio para desligar a televisão ou fechar a aba da plataforma, para outros é a indicação de que vem aí uma sessão de entretenimento que vai captar a atenção por longos minutos. Enganam-se os que pensam que todos os conteúdos de true crime se encaixam nas classificações de terror ou suspense (que, muitas vezes, têm como base a fantasia). O true crime é, na verdade, uma ode à não-ficção - e é aí que está o seu verdadeiro ouro: quanto mais próximo da nossa realidade, mais interesse do público tende a atrair.
As produções que se inserem no género true crime retratam, necessariamente, casos reais e de relevância pública. Não é apenas “baseado em factos reais”, mas sim, a verdade nua e crua. Neste tipo de conteúdo, o mais comum é quando os autores, apoiados em material jornalístico para manterem o público no terreno do real, usam entrevistas, áudios do processo, gravações em tribunais e imagens da cobertura de imprensa feita na época do ocorrido. Os assassinatos (individuais ou em série), sendo estes os tipos de crime mais abordados pelas produções, ramificam-se em temas como o perfil psicológico do criminoso, os plot twists do caso, os detalhes sobre as investigações, a explicação do modus operandi do assassino e até mesmo os erros e problemas que possam ter ocorrido no processo de análise do ocorrido.
Já a resolução dos crimes, que por muitas vezes não acontecem na vida real, são um dos fatores que tornam os conteúdos de true crime ainda mais intrigantes à audiência, abrindo espaço para o público opinar sobre os factos e até mesmo criar as suas teorias da conspiração. Na internet, há imensos fóruns, grupos e espaços destinados ao debate sobre crimes reais, construindo a sensação de que o espectador também faz parte da investigação dos casos. É exatamente essa interatividade que nos leva a uma pergunta que, invariavelmente, já deve ter passado pela sua cabeça desde o início deste texto: afinal, por que somos tão fascinados por assuntos tão sórdidos?
Crime scene, do not cross!
Para Dean Fido, professor de psicologia na Universidade de Derby Online Learning, a ideia de que esses conteúdos oferecem puzzles para a audiência é um deles. “Os títulos de true crime são muito diferentes dos programas típicos que normalmente se assistem enquanto se realizam outras tarefas. São um tipo de história que é preciso desligar o telemóvel e prestar atenção. É um grande puzzle e não queremos ficar sem qualquer informação vital para sua resolução porque estávamos a verificar as redes sociais”, expõe.
“Como humanos, estamos sempre à procura de algo novo e inovador. Seja bom ou ruim, precisamos de algo que crie um elemento de excitação. Quando misturamos esse desejo com um puzzle, essa junção oferece-nos um choque de adrenalina, mas num ambiente relativamente seguro”
— Dean Fido, professor de psicologia
De certa forma, as tensões que envolvem assuntos como morte, sequestro, violação, assassinato, etc., colocam-nos numa posição de alerta, fazendo com que, enquanto consumimos aquele conteúdo, nada ao nosso redor seja tão importante quanto o desenrolar daquela história. Pensando que vivemos hoje numa lógica de estímulos constantes, essa atenção plena estimulada por produções de true crime acaba por funcionar como um antídoto contra a extrema ansiedade. Kinda creepy, mas esse é o resultado direto que choque de adrenalina nos faz.
Outro fator interessante sobre o fascínio do ser humano por conteúdos de violência explícita é, ironicamente, o nosso senso natural de preservação. Para os estudiosos, nada faria mais sentido do que isso - afinal, a ideia da aprendizagem por repetição é algo comum na nossa sociedade. Olhamos para as situações e aprendemos com elas - sejam vividas por nós ou não. Para a escritora Roz Watkins, trata-se de estar bem distante do perigo, mas perto o suficiente para absorvê-lo.
“Histórias, especialmente histórias verdadeiras, ensinam-nos sobre outras pessoas e sobre como nos mantermos seguros. Permitem-nos experimentar e aprender com coisas terríveis sem nunca estar em perigo real”
— Roz Watkins, escritora
Afinal, depois de uma pandemia e de consequentes confinamentos, a sensação de segurança dada pelo true crime funciona como uma forma de conforto, dissipando sensações negativas ou reafirmando noções de segurança e autoridade.
Pensando sobre a sociedade de hoje, não é difícil compreender as razões que nos levam a consumir conteúdos que nos ensinam como sobreviver diante da violência iminente. Talvez não tão curioso assim constatarmos que o público que mais consome produções de true crime é feminino.
Vamos aos dados:
Um estudo liderado pela professora Amanda Vicary, especialista em psicologia criminal, mostrou que o número de mulheres interessadas pelo género aumentou 16% em 2019;
Outra pesquisa realizada pela ABC revelou que o aumento da popularidade dos podcasts sobre crimes reais que estavam a experimentar é resultado direto do interesse crescente entre as mulheres;
O podcast Wine and Crime também divulgou que do meio milhão de downloads recebidos por mês, 85% é feito por mulheres.
Para a psicoterapeuta Rhea Gandhi, esse interesse feminino pelo assunto surge a partir de um sentimento particular – a justiça. “Na realidade, as mulheres são muitas vezes as vítimas ou sobreviventes do crime, e não as perpetradoras. Talvez sejamos atraídos por esse género em busca de um senso de justiça”, afirma. Segundo ela, “como mulheres que vivem numa sociedade profundamente patriarcal, sentir-se insegura e assustada é quase um estado de espírito constante e, talvez, no nosso profundo desejo de nos sentirmos seguras e protegidas por sistemas legais seja sublimado quando assistimos histórias onde a justiça prevalece. Esse senso de justiça que sentimos no final de um filme ou série de true crime reflete o nosso desejo de fazer parte de sistemas sociais e legais que trabalham incansavelmente para a segurança e proteção das mulheres”.
How to (not) get away with murder
Uma coisa é certa: onde há público, há também grandes corporações a procurar fazer dinheiro. E com um género tão popular quanto o true crime não seria diferente. A Netflix, uma das gigantes dos streamings, é considerada a plataforma que mais produz e/ou distribui conteúdos sobre crimes reais - só nos últimos anos, temos alguns que fizeram sucesso: o documentário sobre os casos do Cecil Hotel, Tiger King: Murder, Mayhem, and Madness, Keep Sweet: Pray and Obey, Girl in the Picture, entre outros. E já há quem se preocupe com a quantidade e o acesso crescente a esse tipo de conteúdo em plataformas tão acessíveis quanto a Netflix.
Uma pesquisa desenvolvida por Glenn Sparks, professor da Purdue University e estudioso dos efeitos da violência nos média, mostra que a violência explícita em canais audiovisuais tem o poder de nos tornar mais tolerantes a ela na vida real, além de criar o sentimento de medo persistente que pode causar distúrbios do sono e outros problemas de saúde. Para ele, a divulgação deste tipo de conteúdo deveria passar por uma régua de responsabilidade social - algo que, hoje, não é aplicado.
A plataforma, quando questionada sobre a popularidade do género true crime e o constante aumento de produções que envolvem violência explícita, disse: "Há uma grande variedade de opções na Netflix: dramas, comédias românticas, programas de culinária, mistérios, documentários, especiais de comédia stand-up e muito mais. Um género com a exclusão de todos esses outros simplesmente não reflete a programação que oferecemos'”. Mas, quando olhamos para a frequência da temática noutros streamings, como Prime Video, Star+ ou HBO Max, o número mostra-se bem menor, sugerindo-se que tais plataformas priorizam mais outros tipos de conteúdo do que a Netflix, que detém (quase que sem concorrência) o coração e a atenção do público amante de true crime.
The monster of fame
E por falar em lucro, visibilidade e fama, há outro nicho de produção audiovisual que cresceu muito às custas do género true crime: os influencers. Basta uma rápida vista de olhos no YouTube ou no TikTok, por exemplo, para encontrar imensos criadores de conteúdo que se debruçam sobre casos reais de assassinato, sequestro, desaparecimento e, num geral, morte. Nos últimos anos, a internet presenciou um movimento muito forte de influenciadoras de lifestyle que pegaram carona na crescente relevância do tema e construíram uma audiência bem engajada (e rentável) ao dissecar crimes que ocorreram ao redor do mundo.
O ponto é que, no fundo, o universo da autopromoção não se alinha muito bem ao da violência (e vice-versa). Para alguns estudiosos, essa relação próxima entre o true crime e a profissão “influenciador” tem um problema que torna a ética difícil de ser visualizada. Afinal, seriam pessoas leigas as mais indicadas para falar sobre histórias que, para alguns, representam traumas profundos? Os trâmites jurídicos e os assuntos relacionados ao sistema de justiça não deveriam ser tratados por profissionais que compreendem, de fato, todas as implicações que os cercam?
Mais recentemente, essa discussão veio à tona após um vídeo da @themisspamelaj viralizar no TikTok ao questionar o quão estranho (e, em alguns casos, de mau caráter) é relacionar crimes reais com patrocínios de alinhadores dentários, por exemplo. Ou, no pior dos casos, usar um tom humorístico com piadas mórbidas ao tratar sobre o assunto. “O verdadeiro crime deve ser um memorial para as vítimas, conseguir patrocínios parece tão errado. Acho que ninguém deveria lucrar com um assassinato”, disse um utilizador nos comentários do vídeo.
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O perfil de Pamela, que é dedicado ao apoio de familiares de vítimas de assassinatos em série, defende um ponto que muitos fãs de true crime não chegam sequer a pensar: para além das pessoas envolvidas no assassinato, há pessoas (familiares e amigos, na maioria das vezes) que lidam dia após dia com os traumas do ocorrido e com a falta de sensibilidade da internet ao lidar com o caso. “É por isso que fiz estes vídeos. Essas famílias estão nas redes sociais. Eles veem o seu desrespeito”, diz Pamela ao responder um dos milhares de comentários que recebe diariamente em suas redes sociais.
Quando olhamos em retrospecto para o assunto, algo é comum em todos os pontos abordados: os limites. Até que ponto é saudável assistir a conteúdos de violência tão gráfica? É respeitoso lucrar em cima do sofrimento alheio? É importante termos uma fiscalização mais firme sobre esse tipo de produção? E por aí vai. O true crime enquanto género de entretenimento, embora muito popular, ainda é pouco compreendido em todas as suas facetas. Ao cair na internet, ganha ainda mais alcance, mas não profundidade de discussão. Como utilizadores das redes e consumidores assíduos de streamings, o nosso papel (que antes sempre foi o de espectador passivo) tem se tornado o da autoregulação - onde é vital questionarmos aquilo que recebemos nas redes sociais. Para o bem - mas também para o que for mau.