Já parou para refletir se o conteúdo que acompanhamos online é personalizado ou padronizado? Podemos responder que “depende”, mas não nos entenda mal: a ideia não é ficar em cima do muro ou escolher os dois lados da moeda, mas, sim, escolher olhar com mais calma para a forma como funciona esta artimanha moderna chamada algoritmo - e entender que, de facto, a consequência nas nossas vidas, percepções, comportamentos e desejos “dependem” de como nós, enquanto mentes questionadoras, lidamos com ele.
Uma coisa podemos adiantar: a Independence Insights desta semana leva-nos para uma reflexão sobre o que (e como) consumimos no conforto dos nossos smartphones.
Em terra de algoritmo, quem estoura a bolha digital é rei.
Não adianta negar: todos nós participamos (mesmo que sem perceber) de uma bolha digital - ou, noutras palavras: um ciclo definido de assuntos, pessoas, lugares e formatos que se agrupa todas as vezes que navegamos por websites e redes sociais, construindo um ambiente “único” que vai de encontro com os nossos interesses.
A premissa básica desta tal bolha (e o fator que a torna tão sedutora) é a ideia de que, no nosso espaço digital, recebemos conteúdo personalizado de acordo com os nossos gostos mais intrínsecos sem precisarmos de fazer um grande esforço para tal. Isto é possível graças ao nosso histórico de pesquisa e consumo de sites, que aperfeiçoa cada vez mais esse sistema de recomendações e personalização - que, hoje, é largamente conhecido como… ALGORITMO! Vale a pena ler este artigo da TAB Uol para aprofundar o assunto.
No início, não tínhamos nada para reclamar sobre isto - afinal, os algoritmos basicamente fazem o nosso trabalho e tornam o ambiente digital ainda mais relevante e útil para as nossas necessidades diárias.
O problema é que o algoritmo funciona como um cigarro no nosso organismo: oferece uma experiência e alívio no começo, mas pode acabar com a nossa saúde a longo prazo. Tal como o cigarro, é muito viciante e difícil de deixar.
Refletindo juntos: o algoritmo precisa de aceder ao nosso comportamento digital para que o sistema de recomendações seja realmente eficiente e duradouro. Esta fração de nós, na prática, é representada pelos nossos gostos - desde os mais triviais até aos mais inconscientes. E é aí que entramos na parte mais perversa desta história toda, uma vez que tais gostos, preferências e compatibilidades são construídos pela cultura. Ou seja: para amadurecermos os nossos gostos e pensamentos, precisamos de ter experiências com alteridade (com o que é diferente). Como acontece isto numa realidade onde vemos as mesmas coisas e não temos contacto com assuntos e opiniões que coexistem fora da nossa bolha digital?
É como se, de um momento para o outro, todas as pessoas fossem iguais. E é porque elas realmente são (ou, pelo menos, estão).
É o que defende esta matéria da revista Elástica, que entrevista as autoras do livro “O Instagram está padronizando rostos?”, de Camila Cintra e Lúcia Santaella. Se olharmos para a discussão levantada pelas pesquisadoras através das consequências geradas pelo algoritmo que falamos acima, chegamos noutro problema latente, que é o da perpetuação de classes dominantes e das suas formas, aparências, etnias e formas de relacionamento com o mundo - afinal, culturalmente falando, são as características de tais grupos que nos foram ensinadas como o que é “belo”, “melhor” ou “correto”.
O sistema de recomendação criado pelo algoritmo é claro na sua função: tornar visível aquilo que, no nosso cerne, consideramos belo, interessante e relevante. E isto, dentro de nossa sociedade que ainda demonstra conceitos racistas, gordofóbicos, sexistas, machistas e xenófobos, faz com que exista, de facto, um tipo de rosto e corpo que alcançam melhor performance nas redes sociais e que funcionam com base na ideia de espetáculo como o Instagram. É exatamente igual às estrelas de Hollywood dos anos 90. Outro artigo da Elástica aborda bem esse assunto e pontua o quanto este ciclo digital é usado para incentivar o crescimento do preconceito. Pode ainda ouvir este episódio em podcast que debate o quanto o algoritmo no Instagram pode gerar um protocolo de censura arbitrária (e sexista) que prejudica, em suma, mulheres e artistas (desde os independentes até ao cineasta Pedro Almodóvar). Vale a pena aprofundar.
E também vale a pena entrarmos noutra reflexão:
Mas, quando todos são iguais, o que acontece com quem é diferente?
Ao que tudo indica, já há uma solução desenvolvida pela era do algoritmo para as pontas que se soltam da massa: a cultura do cancelamento.
Nesta reportagem, escrita pela jornalista Aja Romano (que, inclusive, permite compreender do que se trata a cultura do cancelamento), conseguimos perceber duas vertentes: uma que é usada de forma consciente e reparadora, e outra que é usada como um machado online:
“No reino da boa fé, a conversa mais ampla em torno das questões sociais e o cancelamento pode evoluir para quais devem ser as consequências do mau comportamento público, como e quando reabilitar a reputação de alguém que foi ‘cancelado’ e quem pode decidir estas coisas. Já no de má-fé, no entanto, cancelar torna-se um espectro omnisciente e perigoso: uma multidão de justiça social online que está pronta para se levantar e atacar qualquer um, até mesmo outros progressistas, ao mero sinal de dissidência.”
É neste segundo tipo que o algoritmo age como uma conta matemática de subtração - como explica este artigo da Wired: The Mathematics of Cancel Culture: por meio da bolha digital, o sistema de cancelamento encontra um mínimo denominador comum para riscar da equação e controlar problemas complexos de uma forma simples e rápida. Como diz o autor:
“Desembaraçar problemas complicados exige paciência, e quem tem isso hoje em dia? Mais rápido é podar, cortar, cavar. O problema é: problemas complicados, por definição, são altamente emaranhados, e cortar um fio pode desfazer a desordem, mais do que esperamos.”
Assim, as decisões sobre o que deve ser eliminado nesta equação raramente são metódicas, mas baseadas frequentemente em informações ambíguas. Neste sistema de destruição eminente, que espaço existe para a reflexão, provocação e reparação da sociedade em que vivemos?
É exatamente este ponto que o artigo da BOX1824 explora, que mostra o quanto a ferramenta do cancelamento, que foi criada pela Geração Z com um intuito mobilizador de transformação social, foi deturpado pela Gen Y, que se define pela oposição e não pelo diálogo, que usa a crítica como ferramenta de conexão e que já começa a perder o interesse e a flexibilidade no discurso da juventude. Não há vontade de mudança, mas sim de vingança - e é dessa forma que a ferramenta vira cultura.
Seja certo ou errado (afinal, este conceito é geralmente relativo), o “diferente” ganha uma camada densa dentro da dinâmica online - e não podemos negar que este facto é, em grande parte, culpa nossa. Como em qualquer relação, é importante estabelecer o olhar crítico, a abertura para a reflexão e a vontade de dialogar – mas, com o tempo, a comodidade oferecida pelo algoritmo fez-nos esquecer que estes três pontos são a base para um futuro mais justo e acolhedor. Embora seja mais fácil convivermos com o que nos é parecido, a evolução só acontece quando entramos em contacto com o que nos é estranho, seja para aprender ou aperfeiçoar. Depois de tudo o que passamos recentemente enquanto sociedade, isso é mais do que necessário: é questão de sobrevivência.